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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

António Franco Alexandre

Vou pôr um anúncio obsceno no diário
pedindo carne fresca pouco atlética
e nobres sentimentos de paixão.
Desejo um ser, como dizer, humano
Que por acaso me descubra a boca
e tenha como eu fendidos cascos
bífida língua azul e insolentes
maneiras de cantar dentro de água.
Vou querer que me ame e abandone
com igual e serena concisão
e faça do encontro relatório,
ou poema que conste do sumário
nas escolas ali além das pontes
E espero ao telefone que me digam
se sou feliz, real, ou simplesmente 
uma espuma de cinza em muitas mãos.

António Franco Alexandre
Quatro Caprichos
Assírio & Alvim, 1999

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014


                                    
                                          Jorge Luís Borges

OS BORGES

Bem pouco ou nada sei de meus maiores
Portugueses, os Borges: vaga gente
Que prossegue em minha carne obscuramente,
Seus hábitos, rigores e temores.
Ténues como se não tivessem sido
E alheios aos trâmites da arte,
Indecifravelmente formam parte 
Do tempo e da terra e do olvido.
Melhor assim. Cumprida a sua faina
São Portugal, são a famosa gente
Que forçou as muralhas do Oriente
E deu-se ao mar e ao outro mar de areia.
São o rei que no místico deserto
Se perdeu e o que jura que não está morto. 

Jorge Luís Borges in " O Fazedor"



SEM OUTRO INTUITO

Atirávamos pedras
à água para o silêncio vir à tona.
O mundo, que os sentidos tonificam,
surgia-nos então todo enterrado
na nossa própria carne, envolto
por vezes em ferozes transparências
que as pedras acirravam
sem outro intuito além do de extraírem
às águas o silêncio que as unia.

Luís Miguel Nava in " Vulcão"


















Fotografia de Adriano Bastos

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Quem

Espera.
O aproximar das aves, beijos molhados trazem nos bicos.
Espera,
e sente a felicidade de triste se saber triste.
Espera, por alguém, por quê,
por ninguém.
Na face a paisagem do gelo.
Impenetrável e pura como a quietude de quem toca no vazio.
Espera.
Adormecida.
Invisível.
As mãos estão abertas e esperam o cair da tarde e o repousar das aves. 

Isaura M.Sousa

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Traço

 Acontece quando se abrem as mãos,
se rasga a escrita como sóis de oiro ateando o fogo do trigo das tardes de verão.
São pequenas ainda as mãos e os dedos, 
já querem segurar o mundo com  um fino traço invisível no azul quente do tecto da terra.
Inseguras, frágeis e poderosas como o são as mais belas coisas do universo.
As mãos, os dedos, as espigas, o sol, o Agosto.
O fino traço, invisível no azul.

Isaura M. Sousa


terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Regressar Ao Corpo

Regressa o corpo,
desfolhados os segredos guardados de outros viajantes da vida,ergue-se a muralha e o silêncio vale oiro.
Rosto salpicado de papoilas na visão matinal.
Refeito do sopro do vento das terras do norte.
Cansado e desavindo,
feliz..., reecontrado...
Na noite o início do dia,
o sol em capricórnio traz o infinito, frases perfeitas quase certezas.
Voltados, corpos e gentes e sementes,
trigos e papoilas,
cantos e cotovias até ser novo dia.
Das mãos nascem margaridas e o prenuncio de novo dia.
Regressa o corpo.

Isaura M. Sousa

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Para o Eugénio de Andrade

Começamos por perseguir algo.
 Não podia evitar, era muito poderoso, demasiado importante. A poesia, as mãos ou os frutos ? O Eugénio ser em carne e osso ?
 Ficou guardada para ti esta transparente e honesta página da minha passagem pela vida. 
 Referência maior que mais estimo, conquista de sonhos, aprendizagem de luz. Até te encontrar vagueava e procurava algo mais do que sabia dizer, ficaste sempre presente na minha vida desde tenra idade e ajudaste-me a crescer alimentando o meu coração sedento da alegria da tua inspiração e sensibilidade, poeta da luz, poeta do sol, poeta das mãos, poeta dos frutos.
 Seria manhã ainda quando te procurei..., sempre soube que me esperavas com o teu rosto de cera em eremita, eu com a minha estranha incerteza de te olhar. Quase não te vi.Foi como se te tivesses embrenhado nessa matinal névoa da Foz que foi a nossa cúmplice. Por entre as janelas do olhar procurei-te e tardavas. A magia do sol que rasgou a bruma atraiu-te.Estavas sereno como um gato. Guardo-te nos lugares possíveis e impossíveis, nos que conheço e desconheço.
 Fizeste-me entrar na tua casa, vacilei..., pensei que não iria pensar, pensei que não iria sentir..., foste amigo e perguntaste-me o meu nome e o nome da minha filha.
  - Isaura
  - Francisca
Curioso, de repente fomos familiares como sempre imaginara, - Francisca é um nome com um sabor surrealista...Fanny Owen, Agustina, Manuel de Oliveira. O Eugénio voltou a sorrir, lindo vê-lo sorrir !
"A solidão, a criatividade e a poesia são uma fatalidade"
Obrigada Eugénio de Andrade.

Passeio Alegre, Porto no dia 25 de Agosto de 2001


sábado, 1 de fevereiro de 2014

Coração Habitado

Aqui estão as mãos. 
São os mais belos sinais da terra. 
Os anjos nascem aqui: 
frescos, matinais, quase de orvalho, 
de coração alegre e povoado. 


Ponho nelas a minha boca,
respiro o sangue, o seu rumor branco,
aqueço-as por dentro, abandonadas
nas minhas, as pequenas mãos do mundo.

Alguns pensam que são as mãos de deus
— eu sei que são as mãos de um homem,
trémulas barcaças onde a água,
a tristeza e as quatro estações
penetram, indiferentemente.

Não lhes toquem: são amor e bondade.
Mais ainda: cheiram a madressilva.
São o primeiro homem, a primeira mulher.
E amanhece. 



Eugénio de Andrade